*trinta e quatro*

Em criança gostava de perder horas a sonhar com o futuro. Passava noites inteiras a planear cada detalhe do que seria a sua vida. Sempre foi uma rapariga solitária. A miúda estranha que mudava de escola todos os anos - às vezes mais que uma vez por ano – e que cedo desistiu de fazer novos amigos a cada mudança. Sempre preferiu passar os intervalos no canto do recreio. Isolada no seu mundo. Onde não tinha de explicar, uma e outra vez, de onde vinha ou para onde ia
Lembra-se de passar as férias de Verão a escrevinhar no seu diário. Caixinha de desabafos. O melhor amigo a quem confessava as suas mágoas. Mas principalmente os seus sonhos. Nunca foi de ficar a olhar para trás. Ou de se queixar pelas suas desventuras. No fundo sempre gostou mais de usar o futuro como escape para as dores do dia-a-dia. Mesmo nos momentos em que se sentia mais só preferia fantasiar sobre o dia em que se veria rodeada de amigos. 
Nunca quis ser a miúda mais popular – essa ideia sempre a assustou, na verdade – mas cedo compreendeu que seria mais feliz quando tivesse à sua volta alguém com quem partilhar o seu mundo. Os seus planos. Sempre foi uma fanática do planeamento. Perdeu conta às vezes em que escreveu no papel todos os dias que tinha pela frente. Houve alturas em que acreditou que tudo na sua vida seria linear. Pelo menos a partir desse dia.
Vivia na ilusão de que o pior já tinha passado e que de hoje em diante tudo seria finalmente fácil. Queria uma história com final feliz  - como lhe prometiam nos livros que trazia sempre consigo. Mas queria acima de tudo que a sua vida fizesse sentido. Que tivesse pés e cabeça – ainda que o tronco nem sempre tivesse sido bem definido. Gostava que deixassem de lhe perguntar coisas para as quais não tinha resposta. E que deixassem de lhe dizer o que era ou não possível. Ou realista. 
Para ela qualquer sonho estava apenas à distância da vontade. Sempre acreditou que haveria de chegar onde quisesse. Ainda que tantas vezes tenha sido forçada a aprender que certas coisas não merecem o esforço. Preferia viver num mundo em que os limites fossem definidos por si, e não pelas pessoas que a rodeavam. Quantas vezes baixou a cabeça e disse sim, tens razão para em segredo pensar mas quem decide sobre isso sou eu
Gostava de ouvir os outros. De observar o mundo à sua volta. Nem que fosse para se rir das ideias parvas que ia apanhando aqui e ali. Era uma miúda calada. Por vezes tímida. Mas sem medo de dizer o que pensava. Embora muitas vezes não se desse ao trabalho de partilhar com o mundo aquilo que ia na alma. Mais por não ter paciência para explicar coisas que para si sempre foram óbvias. Não tanto por achar que as suas ideias eram melhores. Apenas diferentes. Às vezes muito diferentes. 
Sempre falou baixinho mas – com as suas ideias estranhas – sempre conseguiu que toda a gente se virasse para a ouvir. Ainda que logo em seguida todos se rissem de si. Às escondidas. Nunca percebeu porque é que todos pareciam ter algum medo de si. Olhavam para ela de lado e evitavam o contacto. Talvez no fundo não soubessem o que dizer. Ou temessem ouvir alguma coisa para a qual não tivessem resposta. 
Era uma miúda que insistia em dizer as coisas como as sentia. Sem floreados. Por vezes de forma demasiado directa. E isso confundia-se com indelicadeza. O que muito lhe convinha. Assim conseguia manter à distância uma série de pessoas. Evitava a proximidade excessiva que tanto a incomodava.
Nunca percebeu a necessidade de fazer conversa e os amigos que foi fazendo foram aqueles que souberam acima de tudo partilhar silêncios. Pontuados por piadas parvas. Deixava-se seduzir por pessoas capazes de se rir de si próprias. E dos azares da vida. E de todas as asneiras que somos capazes de fazer no dia-a-dia. Sempre foi melhor a confidenciar actos falhados do que a partilhar sucessos. 
Até porque nunca soube lidar com elogios. Ou com palavras doces. Apesar de sempre ter sonhado com cenários mágicos. Saídos de contos de fadas. Onde respirava paz. E em que encontraria finalmente as palavras certas. Nos momentos certos. Sem ter de se preocupar em ser perfeita. Esse pesadelo que sempre a assombrou. 
Desde pequena foi listando as suas capacidades. Bem como as limitações. Como se tivesse plena noção de quem era. Ou como era. Acreditava conhecer os seus limites. Que mesmo não sabendo para onde ia,  tinha certezas sobre o que nunca faria. Como se pudesse prever a sua reacção perante cada desafio. De forma consistente. Ou adulta, como insistiam em chamar-lhe.
Acreditava que seria sempre fiel aos seus princípios. E que estes se manteriam inalteráveis para todo o sempre. Que nunca lhe faltariam forças para agir de acordo com o que esperavam de si. Sempre com o propósito maior de não desiludir. Como se tal fosse conciliável com os seus sonhos. Como se fosse possível chegar onde nos esperam sem deixar algumas mágoas pelo caminho.
O tempo ensinou-lhe que estava afinal errada em relação a tantas coisas. Mas foi só mais tarde, aos trinta e quatro, que se viu numa nova encruzilhada. Via-se agora forçada a tomar decisões. A procurar um equilíbrio entre o desiludir e o desiludir-se. Entre o respeitar e o respeitar-se. Ou entre fazer feliz ou ser feliz.
(continua)

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